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O FUTURO CHEGOU, E AGORA?

Entrevista com Domenico de Masi


Considerado um dos maiores pensadores de nosso tempo, Domenico de Masi é o sociólogo mais mal interpretado pelos leitores de orelhas de livros, que o rotulam como uma espécie de guru da ociosidade. De fato, suas obras ostentam títulos que sugerem o apreço pelo dolce far niente, como é o caso de “Desenvolvimento Sem Trabalho” e o de sua obra mais aclamada: “O Ócio Criativo”. 

A verdade é que, ironicamente, De Masi é um pensador que trabalha demais, lecionando, escrevendo, pesquisando e palestrando por diversos países, dentre eles o Brasil, terra pela qual possui uma confessa admiração. Esse apreço por nosso país está evidenciado de forma bastante clara em seu mais recente trabalho: “O Futuro Chegou”. 

O livro dedica um capítulo inteiro à narrativa de nossa irregular, trágica, confusa, cruel e apaixonante história. O autor chega a se referir à nossa sociedade como um modelo quase idealizado, no qual a tolerância e a índole pacífica servem como referência para o resto do mundo. 

Se somos o país do futuro, e o futuro chegou, devemos ter o que celebrar, mas, principalmente, o que perguntar sobre esse novo e inquietante momento que estamos vivendo. Numa conversa franca com esse entusiasta do tempo livre em prol da criatividade e do trabalho, pudemos ter o privilégio de saber um pouco mais sobre seus pensamentos a respeito de assuntos como Brasil, futuro, economia, ócio criativo e fatores que afetam direta e indiretamente nossa vida e a sociedadeA versão completa está disponível na versão impressa. 






Se somos o país do futuro, e o futuro chegou,

devemos ter o que celebrar, mas,

principalmente, o que perguntar sobre esse

novo e inquietante momento que estamos

vivendo. Numa conversa franca com esse

entusiasta do tempo livre em prol da

criatividade e do trabalho, pudemos ter o

privilégio de saber um pouco mais sobre seus

pensamentos a respeito de assuntos como

Brasil, futuro, economia, ócio criativo e fatores

que afetam direta e indiretamente

nossa vida e a sociedade.


O fato de sermos um povo amigável e pacífico é tido pelo senhor como um exemplo de sociedade que usa essas características para perpetuar uma convivência harmoniosa, resultando também na conquista do título de “país do futuro” que tanto nos foi atribuído no passado. Mas o senhor não acredita que esse excesso de tolerância possa gerar acomodação ou fragilidade?

Os gregos elaboraram uma distinção muito interessante entre dois modelos de pensamento e de comportamento: tesis e metisTesis era o pensamento linear, racional, rígido, retilíneo, unidirecional, representado como uma flecha lançada de um arco; Metis era o pensamento flexível, curvilíneo, pluridirecional, representado como uma serpente rastejando de modo sinuoso e imprevisível. Quando conquistaram a América do Aul, os espanhóis implementaram em suas colônias um modo de pensar catalão, similar a Tesis; planificaram as cidades, os cursos d´agua, organizaram o trabalho de um modo racional. Sergio Buarque de Hollanda (um dos mais importantes historiadores brasileiros de todos os tempos), em “Raízes do Brasil”, diz que eles procederam como pavimentadores de estrada com sistematização. Ao contrário os portugueses, implementaram no Brasil um modo de pensar lusitano similar a Metis. Cada problema sendo enfrentado e resolvido com base na situação contingente, sem uma estratégia precisa e sem uma ríida planificação. Sergio Buarque de Hollanda diz ainda que eles procederam como semeadores, espalhando as sementes ao vento sem se preocupar com o local da queda. Desta raiz antropológica, e de sua mistura com a matriz indígena e a africana, deriva o comportamento amigável e pacífico que prevalece no povo brasileiro. Por si só, isso representa um grande diferencial e um grande recurso. Mas, somado ao “jeitinho brasileiro”, pode determinar um resultado negativo, marcado pela aproximação com o desleixo e a insegurança. A minha cultura napolitana é muito similar à brasileira, por isso conheço bem os perigos a que está exposta e que consistem, principalmente, na possibilidade de transformar a amigabilidade e o pacifismo em acomodação ou fragilidade, das quais derivam a corrupção e o atraso.

Como o senhor acredita que deva ser o perfil básico do profissional apto a se desempenhar com sucesso no “país do futuro”?
Para o Brasil, o perfil básico necessário para ser atualmente um “país do futuro” consiste em uma economia plural, isto é, desenvolvida seja no setor agrícola, seja no industrial, seja no pós-industrial. Mas desenvolvido de maneira autônoma, coerente com a cultura brasileira e não subalterna à europeia ou à norte-americana. Para o profissional brasileiro, o perfil básico deve consistir em uma base humanística para todos, valendo também para quem exerce profissões científicas. A força do Brasil, de fato, é o humanismo corporal, assim como a força da Índia é o humanismo espiritual. Por humanismo entendo a consciência da cultura clássica do oriente e do ocidente, a história e a arte do Brasil, a filosofia e a antropologia. Sobre esta base,  igual para todos os profissionais, pode- se então construir uma profunda especialização para cada profissão, continuamente informada sobre o progresso mundial de cada área.


Embora o Brasil tenha prosperado, não somos uma ilha e continuamos dependendo em muita coisa do mercado internacional e da volatilidade econômica mundial. O senhor acredita que um país (em especial, o nosso) tem condições de ficar blindado e invulnerável às interferências externas, sejam elas positivas ou negativas? 
Na atual sociedade globalizada e pós-industrial, nenhum país pode iludir-se de ser independente da interferência externa. Agora dependemos todos de todos, mas a troca permanece desigual. O primeiro mundo produz e exporta sobretudo ideias, graças à criatividade e à pesquisa; os países emergentes produzem e exportam sobretudo bens materiais, graças à produtividade e às fábricas; o terceiro mundo produz e exporta sobretudo matérias-primas, graças aos seus recursos naturais. Se o Brasil deseja ficar no primeiro mundo, no qual está inserido há pouco tempo, deve ser um grande produtor de ideias, transformando o “jeitinho” em flexibilidade e a amigabilidade em colaboração, promovendo a alfabetização da população como um todo e elevando constantemente o nível cultural do país com as suas universidades e com seus canais de mídia , que estão já hoje entre as melhores do mundo.

Em que o senhor acredita que a sociedade mais ganhará com a ascensão das relações digitais no trabalho e no lazer, e em que a web e os recursos virtuais serão mais perniciosos para com nossas profissões e nosso tempo livre?
Eu acredito que a web e as relações digitais oferecem a possibilidade de acrescentar aos atuais canais de comunicação (oral, escrito, radiofônico, telefônico) um novo nível, mais rápido, mais preciso, mais universal, mais flexível, menos custoso. Depende de nós a forma de usar este novo nível comunicativo fazendo com que seja um instrumento de saber e de liberdade ou degradá-lo, transformando-o em um instrumento de divisão digital e de nova escravidão.

No Brasil, temos a percepção de trabalho como algo penoso, que dignifica o homem mas custa-lhe o suor no rosto, os calos nas mãos e a falta de tempo para a vida pessoal. Isso fatalmente gera sentimento de culpa quando se fala em compatibilizar trabalho e lazer. O senhor acha que somos menos ou mais aptos que o resto do mundo para aplicar o “ócio criativo” em nossas vidas?
O “workaholismo” (estrangeirismo ligado ao termo “workaholic”, que significa compulsão por trabalhar, vício em trabalho) é uma doença presente sobretudo nos países de cultura católica. Nos países protestantes é uma preocupação limitada ao top manegement. Na Alemanha, todos os trabalhadores, incluindo os dirigentes, encerram suas atividades ao término de oito horas. Portanto, a economia e a sociedade funcionam muito bem. Ao contrário, na Itália, na Espanha, em Portugal e na América Latina, os managers (executivos), preferencialmente masculinos, ficam no trabalho por muitas horas além do fim do expediente sem receber por este período extra de atividade. Também por isso, a economia e a sociedade funcionam mal.
Todavia, entre todos os países que conheço, o Brasil é aquele que apresenta mais inclinação para o ócio criativo. A sua cultura, a sua antropologia e a sua miscigenação o direcionam para mesclar o trabalho com o lazer, o induzem a divertir-se também enquanto trabalha. Por este motivo, o meu livro “O Ócio Criativo” obteve tanto sucesso. A predisposição ao ócio criativo faz do Brasil um dos países cuja vida é mais agradável e um dos países mais amados do mundo. Não existe a menor possibilidade de que uma potência estrangeira pratique contra o Brasil um atentado como aquele das duas torres contra os Estados Unidos.


Para concluir, seu mais recente livro afirma já na capa que “O Futuro Chegou”, e há nele um capítulo confirmando a máxima de que o Brasil é “o país do futuro”. Mas como será o futuro do futuro? Ou melhor, como o senhor vê nosso país até o final desta década e além? 
Eu acredito que o Brasil não é mais o “país do futuro”, mas, já agora, o país do presente. Por isso intitulei o meu livro como “O Futuro Chegou”. Os países no mundo são 196. O Brasil é o quinto país em superfície, em população, em produção industrial e em exportação. O que precisa mais para estar já no futuro? Estou conduzindo, com a colaboração de 11 grandes intelectuais brasileiros, uma pesquisa sobre como será o Brasil em 2025. Quando estiver terminada, poderei dizer como será, muito provavelmente, o futuro do futuro deste extraordinário país.   E esperamos, nós, desenvolvedores e leitores da Toda Vida, ter o privilégio de, em uma nova oportunidade, obter acesso privilegiado e (quem sabe) em primeira mão às conclusões tão preciosas que esta pesquisa poderá nos trazer. O “país do hoje” agradece.